sexta-feira, 14 de setembro de 2012

La Revancha del Pablo

A vingança é um prato que se serve frio, portanto a sua eficácia escala exponencialmente se o inimigo se encontrar a sofrer de problemas de sensibilidade dentária ou acometido por uma pneumonia em estado terminal. Um inimigo enfermo aumenta a susceptibilidade de sucesso de uma "vendetta", não sendo portanto casual o aumento de crimes de origem mafiosa nos meses mais frios do ano. A vingança é muito pouco ética, pouco dada a sentimentalismos ou Convenções de Genebra. Dispara enquanto o adversário faz a barba para o deixar desassemelhado no velório, esfaqueia quando ele está de costas para não lhe ver o franzir do olhos e pontapeia-o no chão para não contrair nenhuma lesão muscular na virilha por levantamento excessivo do membro inferior. A vingança não é tipo de gente que se leve a jantar ou se convide para dançar, mas fica sempre bem numa lista de contactos telefónicos.

Há uns anos atrás, uma banda de origem francesa enfiou-se durante uns dias num estúdio de gravação e quando de lá saiu trazia na sacola uma álbum intitulado "La Revancha del Tango" o que na altura deixou o Mundo meio acaburnhado por não entender como algo tão quente e sensual como o tango poderia ser vingativo. Tudo no tango é temperatura a subir, tudo no tango são termómetros a tremelicarem de pressão, tudo no tango é Sahara, Mojave, Amareleja. O tango é um compasso dois por quatro sob a influência de psicotrópicos de origens desérticas. Sabe-se que um casamento é feito sem amor quando os noivos abrem a pista com um tango e depois ficam na festa até às 4h00 da manhã. Resistir a estrear imediatamente o leito de sexo marital após uns voluptuosos 2,17m de "La Cumparsita" devia ser uma cláusula obrigatória em todos os acordos pré-nupciais, na secção de "Coisas que Resultam Automaticamente em Divórcio Litigioso".

Levou algum tempo a entender, mas consegui-se concluir que o alvo da vingança do tango era Portugal, pátria de gentes apaixonadas por músicas de mensagem cinzentona e ritmos não dançáveis. Em terras das Pampas a revolta contra esse povo estranho de tez clara do Velho Continente era justificada por não conceberem ritmo sem aconchego, música sem agarro, som sem sensualidade. Olvidavam eles que na base de tudo estava, não um problema de bailarinos, mas uma negação de romantismo. Onde o argentino fecha o sentido, o português liberta o músculo zigomático, onde o sul americano cheira o pescoço feminino, o europeu saboreia a pele, onde o nativo das Pampas sussurra ao ouvido, o nativo da Estrela mordisca o lóbulo, onde o patagão admira os seios, o lisboeta afoga o nariz nos entrecampos mamários e vaza o olho no mamilo excitado. A conquista do coração português era uma quimera quase impossível de consumar, mas o "quase" revelou-se um desafio irresistível para os conterrâneos peronistas.

O 1º Corpo Expedicionário Argentino mobilizado para conquistar a cardiologia lusitana partiria então para Portugal, carregando debaixo de um braço o título de "Melhor Hoquista do Mundo" e debaixo do outro a bolacha parisiense de inspiração gardeliana. O miúdo revelou-se uma jóia de pessoa, deslizando como que guiado por sapatos telecomandados pelos ringues da nação, manejando o stick como Uri Geller manejava uma colher de sopa em aço inox. O mesmo contorcionismo estético, o mesmo ilusionismo mágico, as mesmas pessoas coladas à telinha que mudou o Mundo. O cenário adivinhava-se grandioso para os generais sul americanos, mas por cá a cara exemplarmente escanhoada do jovem começou a fazer espécie a muita gente de bem e o romantismo pré-idade-do-bronze voltou a dar de si e num impulso tourettiano o povo exclamou a uma só voz "se nos querem vencer com caras larocas, mandem a Gabriela Sabatini"... mas ela nunca veio. Entre a aposta numa boneca de cerâmica e um rosto cavernal, a opção pelo segundo imperou no seio dos frequentadores de boites platenses.

O Conselho de Estado Argentino reuniu-se de emergência na Casa Rosada com dois pontos de discussão: a questão Malvina; a questão Portuguesa. Um estraçalhador de papel foi recrutado e a questão Malvina deixou de ser questão. A concentração de um país humilhado por indivíduos vestidos de preto e bigode farfalhudo centrou-se na pátria de Amália e antes que alguém opinasse erroneamente, Menotti gritou de dedo em riste "porque deixaram Houseman envelhecer?". Bilardo mais calmo sorriu e de olhar prostrado numa folha A4 onde desenhava um lama da Patagónia exclamou secamente "ao menos não está balofo como Don Diego". Maradona sentiu a achega e explodiu em fúria "Pablito carajo, Pablito Aimar". Kirchner assentiu, acrescentando "tudo o que se possa fazer para deixarmos os espanhóis de rastos tem a minha aprovação". Valeri não se conformou "e eu, dio mio, e eu?", não sem antes pedir a Bolatti um bife argentino médio-mal passado e um copo de tinto chileno.

El Payaso não foi consultado nem precisava. Desde 1995 que tinha colocado a alma e o coração ao serviço da pátria e não recusaria tamanha honra. Passados 2 meses apresentava-se aos nacionais portucalenses... rabona no berço da nação, Suazo a inebriar Gregory com um compasso binário, agarrando-o pela cintura e arfando-lhe junto à boca e num abrir e fechar de olhos quase toda uma equipa reunida em festa. Apenas num canto recôndito do gramado se vislumbrava Pablito impávido, olhar fechado e pensamento ausente. O Tango dele tinha chegado à Europa, triste, sem sorrisos, submetendo o adversário como se de uma mulher na pista de dança se tratasse. Do outro lado do Grande Charco ecoava a certeza de que a conquista estava a um pequeno acorde... que se foi demorando no tempo... esticando a nota... prolongando a síncope... até que ao fim de dois anos a desilusão abateu os corações porteños, quando após uma milonga, Pablito sentou Rui Patrício, disparou certeiro e correu em direcção à turba quebrando o gelo facial, cuspindo um sorriso genuíno. Do Terceiro Anel desceu um xaile negro escrito a branco "Lopab Marai é Ssono". A Vingança do Fado tinha sido servida, gelada, pronunciada em lunfardo.

(participem nesta iniciativa do Ontem Vi-te no Estadio da Luz e do Diego Armés e enviem os vossos textos sobre Pablito Aimar para pablopablitoaimar10@gmail.com)

3 comentários:

POC disse...

Que puta de texto... Um abraço Constantino, gigante.

Ricardo disse...

Belíssimo.

Um reparo: a iniciativa é do Diego e tem uns meses. Ontem decidi dar-lhe um empurrão, porque ainda temos pouquíssimos textos. Este, claro, entrará directo para os que aparecerão em livro.

Aproveito para informar que quem enviar textos para o email que aí está (pablopablitoaimar10@gmail.com) entrará nas eliminatórias que faremos (no Ontem e no do Diego). Inspirem-se, companheiros.

PP disse...

Aplaudo de pé!

A tua descrição do golo do Suazo a passe de Aimar em Guimarães, na altura do Quique, e o golo do Aimar frente ao Sporting... deixa os comentários do LFL do tipo "um poema com a bola" num buraco!

Ao autor, os meus mais sinceros parabéns!